A Senhora do São João
Esta senhora sem nome fez o meu dia, fez a minha noite e, na verdade, fez-me tomar decisões pendentes. Todas temos problemas, indecisões, questões pendentes e esquecidas. Mas cabe a cada uma de nós tomar uma atitude. Seguir o poderoso sexto sentido e confiar na nossa capacidade de nos reinventarmos...
Rita
7/7/20256 min ler


Na noite de São João, sem que nada o fizesse prever, encontrei uma senhora. Não lhe sei o nome, mas sei que, aos 75 anos, é livre e dona de si. Num encontro pouco provável, ali estive eu, mais de duas horas, hipnotizada por cada frase, sorriso e verdade no olhar.
Aos 75 anos, vive sozinha, não tem televisão em casa, não tem um smartphone e viaja sozinha.
Licenciada em Português e Inglês, nunca deu aulas nem seguiu a sua área de formação. Casou com um homem belga e, na Bélgica, viveu ao seu lado durante 10 anos. Foi gestora de equipas, foi comercial, foi dona de casa e até passeava os cães dos vizinhos. Nunca teve animais próprios — não os quis, pois, na sua perspetiva, seriam a prisão que nunca desejou.
Foi estudar para Inglaterra, foi feliz, aproveitou a vida académica, o país e as pessoas. Foi muito feliz, segundo percebi pelo brilho no olhar. Diz que guarda as melhores memórias desses tempos, mas reconhece que fez tudo no tempo certo, e voltar nunca foi opção.
De regresso a Portugal, onde o marido a esperava de férias, decidiu, ao fim de 15 dias, que não queria continuar aquele casamento. Largou tudo: casamento, trabalho, casa e toda a vida na Bélgica. Ficou em Portugal, sem perspetivas de futuro, sem dinheiro e sem casa. Mesmo assim, nunca seguiu o rebanho e diz que nada a assusta. “A vida coloca à nossa frente tudo o que precisamos”, disse ela, com muito orgulho. Da restauração à gestão de eventos, fez um pouco de tudo. “Cheguei a não ter dinheiro para um café, vivia em casa de amigos antigos com os quais já não tinha ligação.”
Voltou a encontrar o amor — um reencontro com uma antiga paixão dos tempos de escola.
“Foi, é e será o amor da minha vida.”
Viveu ao lado dele durante 20 anos e, realmente… só a morte os separou.
Fala com carinho da vida do segundo casamento. Com lágrima no olhar e saudade na voz, conta histórias lindas de amor. Gestos de carinho, cumplicidade e muito respeito. Dou por mim a fazer perguntas como:
“Como é que, nos anos 70, se tem dois casamentos? Como é que se volta a ganhar o respeito?”
Com carinho, responde: “Rita, o respeito que tenho é por mim. A vida é minha. Se eu não fizer por mim, ninguém o fará.”
A assertividade e segurança destas palavras ainda ecoam na minha cabeça.
Se o amor a moveu durante grande parte da vida, agora, há 20 anos viúva, o que a move?
“O amor, claro! Sempre foi o amor! Mas… sempre foi o amor que tenho por mim. Só assim consigo amar os outros.”
Responde ela com um dedo apontado a mim e com um tom de repreensão. Senti um murro no estômago e uma ternura gigante por esta senhora. A cada partilha sua, mais eu queria saber.
“Nunca teve filhos?”, questionei eu, com receio de estar a perguntar demais.
Com assertividade, respondeu-me: “Não calhou, nunca tive ninguém que fosse capaz de me acompanhar.”
Aquele murro no estômago voltou e a minha expressão mudou. Esta senhora não se deu ao trabalho de explicar, contudo, eu tive a curiosidade de perguntar...
“Mas com dois amores tão poderosos, o que faltou?”
Novamente com um sorriso cordial, doce, mas farta do assunto respondeu:
“Ter filhos é um ato de muita responsabilidade e eu nunca senti ter as pessoas certas para dividir essa responsabilidade. O meu primeiro marido disse-me que talvez um dia fosse possível. O segundo propôs adotar. Eu não quis. Ter um filho é um ato de amor e responsabilidade, mas não ter também o é.”.
Insisto: “E hoje, aos 75 anos? Arrependimento?”
Prontamente responde:
“Não, nem pensar. Tenho apenas a certeza de que, se tivesse tido filhos, a responsabilidade teria sido 100% minha, e não é assim que vejo a vinda de um novo ser. Vejo as minhas amigas com filhos e netos, e andam esgotadas. Nunca estiveram sozinhas. São mães dos filhos, dos maridos e dos netos. Eu nunca quis isso para mim.”
Completamente apaixonada por cada vivência, retomo ao facto de não ter televisão em casa.
“O que faz?” pergunto eu.
Responde com a maior normalidade:
“Ouço rádio. A Antena 1, 2 e 3. E quando me farto, desligo. Vou ler, leio muito. Leio de tudo, leio o que o meu estado de espírito pede. E quando não quero nada disto vou passear, vou ao cinema, vou a viajar. Para a semana vou a Espanha, hotel reservado e ainda não sei como é que me apetece ir, vou de avião, carro, autocarro, o universo logo me diz. De manhã acordo sem despertador, o meu pequeno-almoço demora duas horas. Não combino nada com ninguém. Saio de casa e vou encontrando algumas amigas, vizinhos e pessoas que nem sei quem são. Todos me falam e eu retribuo. Sou feliz na minha calma.”
Fico em silêncio à espera de mais. Quero saber mais — na verdade, quero saber tudo. Esta senhora, com 1,55 m, magra, cabelo branco pelos ombros, olhos grandes de cor castanha — estes olhos que não desviavam dos meus enquanto falava. Que olhar poderoso e verdadeiro.
Tento perceber um pouco mais desta senhora de quem não fiquei a saber o nome. Conto-lhe que tenho uma marca de empoderamento e recebo logo de volta:
“De quê?” com um ar muito admirado e confuso.
Explico que somos uma marca de mulheres para mulheres, que desmistificamos a sexualidade e que tentamos mostrar às mulheres que elas também podem ser donas de si e que a vida é delas.
Sou interrompida: “Mas elas não sabem? Ó Rita, eu não acredito que, em pleno 2025, as mulheres ainda vivam como em 1930. É preciso uma marca que fale disso? Não acredito.” — responde-me, incrédula.
Explico que, muitas vezes, os filhos, a falta de amor-próprio, o medo de estarem sozinhas, a economia ou até mesmo a educação levam muitas mulheres à anulação e a acomodação. A nível sexual, a nossa educação religiosa tem muita influência. É preciso falar das coisas, incentivar, explicar — e é isso que nós fazemos.
Ainda sem acreditar em mim, pergunta:
“Mas se as mulheres não sabem quem são, como é que dizem aos outros o que querem?” – continua – “Sexo? Sexo é uma sobrancelha, o nariz, as orelhas, o cabelo. Sexo é tudo, sexo é o toque o desejo é das coisas mais bonitas e verdadeiras da vida…”
Encolho os ombros e acabo por concordar em silêncio. Deu-me os parabéns, mas criticou o facto de atuar na internet. Não podia ser diferente? Assim, ela não consegue acompanhar.
Começa a música dos Santos Populares e aí tive a certeza de que esta senhora é especial. Não segue “manadas”, não vive o que os outros querem, não é influenciada pela sociedade nem pelas suas vontades. Toca uma música do Quim Barreiros, toda a gente canta, dança e está divertida. Sentada no muro, a fumar o seu cigarro de enrolar, vejo o seu olhar surpreso, deslumbramento e orgulho. Nunca tinha ouvido aquela música, gostou e quis saber mais.
Com o passar da hora, perguntei-lhe se gostava do São João. Disse-me que não.
Não foi ali para a festa — saiu de casa porque queria jantar caldo verde e uma vizinha chamou-a, dizendo que ali tinham. Ficou. E ainda me disse:
“A vida coloca tudo no sítio onde deve estar. Eu queria caldo verde, a vizinha chamou-me, a Rita veio para aqui e eu estou a adorar aprender consigo.”
A conversa continuou com histórias lindas, com um exemplo incrível, com um amor por ela própria que eu acho nunca ser capaz de sentir por mim. Tocam as 22h e esta senhora diz que já chega. “Chega de festa, vou para casa ler os meus livros.”
Deu-me um abraço e disse-me:
“Aproveite a vida. Ela é igual ao ponteiro dos segundos.”
E assim foi embora, sem me deixar saber o nome — no meio da festa, sozinha, segura, assertiva e cheia de empoderamento.
Muitas histórias ficaram por partilhar e muita coisa ficou por dizer. Esta senhora sem nome fez o meu dia, fez a minha noite e, na verdade, fez-me tomar decisões pendentes.
Todas temos problemas, indecisões, questões pendentes e esquecidas. Mas cabe a cada uma de nós tomar uma atitude. Seguir o poderoso sexto sentido e confiar na nossa capacidade de nos reinventarmos.
Obrigada à Senhora do São João.
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